sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Catador


Rachaduras no asfalto frio,
Vergalhões expostos, corroídos
Pela ferrugem, poeira sobre os detritos
Que adornam a avenida do vazio.

Por entre as fendas no concreto,
Em meio ao lixo decomposto,
Junto aos ratos sob o céu aberto
O Catador se arrasta sobre o próprio rosto.

Curvado sob a solidão pesada,
Sentado aos degraus da escada,
Alivia a fome com as migalhas de afeto.

Abaixo da linha de visão,
Dentro da caverna de Platão,
O Catador rasteja por seu caminho incerto.

Consumido pela luxúria
Pela luz que fere seus olhos,
Esgotado por dor e fúria,
Saturado de todos os modos,

O Catador já não se lamenta,
Já não relativiza seu pesar,
Sua mente já não sustenta
A ânsia de continuar.

Reduzido a si mesmo
E só sob o manto solar,
Catando os restos a esmo
Sem jamais conseguir levantar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Resignação e Desespero


"Resignação é o desespero confirmado."
Assim disse Thoreau a tanto tempo,
E eu, resignado, há o que me parece uma vida,
Descobri uma nova forma de tormento.

Depois de petrificar-me o peito
E secar minhas lágrimas, doente,
Senti o doce veneno da esperança
Infiltrar-me as veias novamente.

E ao reverter-me a etapas
Que eu considerava vencidas,
O desespero aflora e suas farpas
Reabrem todas minhas feridas.

E sem o vício do choro
E o consolo do vício
Eu já não me resigno,
Desisto.

É só o atar do laço,
A maciez da textura,
A firmeza do nó,
A ciência de uma saída,
Que me enche de ternura
Ao oferecer-me a cura
De estar sempre só.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

À Frente


Três dias à frente.
É possível vislumbrar o futuro
E serei o mesmo.
O poder da projeção consciente
Transforma a visão deste futuro
No presente.

Presente este, em meio ao processo
Que, no passado deu-se início,
De cultivar artifícios,
De fantasiar um regresso

Temporal, vivo nas lembranças
Frebris e nas ânsias,
Nos quadros de tempo perdidos,
Soltos e caídos no olvido.

E é pelos vívidos momentos
De amargura fria e brutal
Que eu invejo com todo meu mal
A dádiva do esquecimento.

Posto que, construída através do passado,
Minha projeção do futuro perece,
Como que numa aversão ao agrado,
Um pouco mais à frente, tudo escurece.

domingo, 10 de junho de 2012

Acordar


As janelas fecham
E Morfeu vem entristecer meu delírio,
Todos os meus desejos vivos,
Todo meu eu esquecido.

Ele vem e com leves sopros frios
Confirma esperanças vazias,
Abre feridas que um dia
Tiraram meus olhos do estio.

Eleva-me ao cume cego do espírito,
Traz-me reais vontades já esquecidas,
Torna-me o que sou, apaga outras vidas,
Socorre-me do vazio real implícito
Na sobriedade dos fatos.

Sorteio de mentiras, corrosivo bem-estar,
Durmo sem perceber Morfeu com uma faca a me acariciar,
Esperando o mais doce instante na jornada do meu acordar...

Lâmina gelada, assustador mundo novo,
E todas minhas dores acentuam-se como que recentes.
E novamente todos os meus sonhos são desistentes.

E mais uma vez sou eu que te sinto ausente.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Esforços


Quero acreditar na minha própria satisfação,
Quero crer na beleza da vida minha,
Quero achar os dias bons, quero esquecer a aflição
De querer querer esquecer o que eu tinha.

Quero dizer que sou algo a mais
E perder-me nas sensações do dia-a-dia,
Quero deixar meu passado pra trás
E acreditar que agora eu queria

Tentar viver, sorrir por mim mesmo.
Aliviar-me as dores e ser quem não sou.
Quero tentar querer o indispensável,
Saciar minhas mágoas na correnteza instável,
Curar as feridas que o tempo não sarou.

No entanto o sentido último desse esforço
Se concentra no querer esquecer um rosto
Que não se esvai da consciência.

Às todas tentativas de paz em mim
Segue o oposto de seu próprio fim
Me empurrando em direção à demência.

O que me faz desejar apenas
O momento em que as vozes calam,
O vazio onde as almas vagam,
O esquecer que nesse mundo meu existem
Feridas que nunca saram.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Condições

Ao respirar o sopro do litoral,
Escalar as alturas do eu,
Libertar-se do inútil e banal,
Segregar-se dos seus...

Involuntário, sereno desespero,
Perder de vista a própria existência
No momento, ir além da própria consciência
Ao vento, conceber um mundo inteiro...

O presente atrasa a marcha
E ao caminhar sozinho
Sem vislumbrar nenhum caminho
O espelho do futuro se racha.

"São só pensamentos" - são?
Reparos malfeitos num ego
Débil, vil e cego
Sucumbindo à solidão.

Eliminar da mente a reflexão,
Recortar dos vícios o Não,
Libertar-se da liberdade, então
Serei feliz.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Esperando

Anoitece
E o sibilar dos ventos costeiros
Sussura-me doces tragédias,

É quando uma angústia calma
Toma de assalto as ruínas do meu peito,
Quando chega-se à percepção definitiva
De que não há mais nada a ser feito.

Na madrugada irei chorar com as nuvens,
Beber das minhas próprias lágrimas
Para não manchar as páginas
Do prólogo do meu epitáfio.

E acordarei sonhando
Uma vida mal concebida,
Sem direção definida,
Enquanto a tarde vai passando.

É só por isso que estou esperando.

Soneto Ausente

Enfim floriu
A venenosa rosa que cultivei
Em total empenho, as dezesseis
Pétalas cor de sangue jorraram do rio.

Um sorriso dolorido manchou-me as faces,
Suprindo, sem satisfazer, uma ânsia
Que carrego comigo desde a infância:
Saborear a dor dos alheios pesares.

Assim desfaço de mim furtivamente
Pra que eu mesmo não me atente
À dissimulação depravada da minha própria consciência,

Além das mentiras que vivo,
Das falsas trilhas que sigo,
Achei paz na dor, conforto na ausência.

Tártaro

Nesse plano além do terror
Torturam-se as mentes sãs,
Permeados por ares malsãs
São ensanguentados gritos de dor.

Os rios transbordam veneno
Nas margens pontuadas por corpos
Mortos, inchados, em rigor mortis pleno.

Membros mutilados balançando com o vento,
Espalhando pestilência e morte
Que mesmo o organismo mais forte
Faz vomitar as tripas no chão lamacento,

E os corvos sedentos de sangue
Em fúria cega alcançam
Onde os sonhos infantes descansam
E rasgam-lhe os pescoços enxangues.

É aqui onde os inocentes gritam
Ao ter os olhos arrancados,
Os escalpos decepados,
As torturas que os homens cogitam.

Ao sentir o sopro da vida
Fraquejar em seu pálido peito
A dor lhe cegará os sentidos
E à morte serás eleito.

Nesse lugar além dos últimos
Delírios de carnificina
Seus sonhos se rasgam nos afiadíssimos
Punhais de uma nova chacina.